ㅤ ㅤㅤNa Grécia Antiga, o mito era a palavra fundante do mundo. A mitologia grega trata, em essência, da natureza da alma humana; e tal como nos coros, ela é rica e polifônica. De Eurípedes ao teatro clássico francês, inúmeras vozes narraram a história de Medeia, uma dentre as célebres tragédias clássicas. Lançando mão de seus modos singulares, as mulheres desejam deixar sua marca.
ㅤ ㅤㅤO povo grego contava suas histórias e pôde perpetuar sua memória, é sabido, pois dispunha de uma tradição de oralidade; esta que foi dos principais recursos para que a cultura grega clássica se tornasse um dos cernes da cultura ocidental. Até os dias de hoje, onde dispomos da tecnologia como mecanismo para fazer ecoar falas diversas, a marca da personagem Medeia vem sendo reeditada no imaginário social. É assombrosa sua ação; uma verdadeira atrocidade. Como uma criança que elabora seu trauma na brincadeira do faz-de-conta, seguimos falando do impossível de ser posto em palavras, do que não cessa de não se inscrever.
ㅤ ㅤㅤNo primeiro ato da peça de Eurípedes (480-406 a.C.), o lamento da ama de Medeia anuncia a tragédia:
“Ah! Se jamais os céus tivessem consentido;/ que Argó singrasse o mar profundamente azul;/ entre as Simplégades, num vôo em direção;/ à Cólquida, nem que o pinheiro das encostas;/ do Pélion desabasse aos golpes do machado;/ e armasse assim com os remos as mãos dos varões;/ valentes que, cumprindo ordens do rei Pelias;/ foram buscar o raro velocino de ouro!;/ Não teria Medeia, minha dona, então;/ realizado essa viagem rumo a Iolco;/ com o coração ardentemente apaixonado;/ por Jáson, nem, por haver convencido as filhas;/ de Pelias a matar o pai, viveria;/ com Jáson e com seus dois filhos nesta terra;/ Corinto célebre” (1-15). (EURÍPEDES, 2007, p. 19)
ㅤ ㅤㅤQue a mitologia, ainda que fictícia, tem alguma razão de ser, isto é observado por Freud (1996, p. 316) ao afirmar que “a lenda grega capta uma compulsão que toda pessoa reconhece porque sente sua presença dentro de si mesma”. No alemão, Freud emprega o termo Zwang para compulsão.
ㅤ ㅤㅤO Zwang freudiano remete ao conceito de compulsão à repetição, apreensível nas primeiras atividades da vida psíquica infantil e nas vivências da terapia analítica como “um impulso que sempre impele, indomável, para frente” (FREUD, 2010, p. 210).
ㅤ ㅤㅤÉ assim que Medeia, traída por Jasão, que desposa a princesa Glauce de Corinto, fala da mulher e de suas fortes paixões: pela via dos vasos comunicantes do Trieb. Vem falar também de uma força desconhecida, uma paixão que irrompe indomável, rompendo barreiras e escancarando a vida inconsciente, ao que Freud muitas vezes chamou de força demoníaca. Este corpo estranho que Medeia desencobre ilustra a loucura feminina.
ㅤ ㅤㅤ“Se, todavia, vê lesados os direitos do leito conjugal, ela se torna, então, de todas as criaturas a mais sanguinária” (EURÍPEDES, 2007, p. 29). Aí está um prelúdio para a ação. Há algo da ordem do horror na figura de uma mãe que mata seus filhos com as próprias mãos, mas que interroga e convoca. Tomada de ira, Medeia apunhala os filhos para ferir o coração de Jasão. Trata-se de uma passagem ao ato.
ㅤ ㅤㅤEurípedes é sábio quando flagra em cena do assassinato a “mão sangrenta prestes a matar a sua própria carne”. É este o enquadre da passagem ao ato. Uma ação sem restituição, um suicídio do sujeito, que em Medeia permite um vislumbre da mulher. A verdadeira mulher, que só se pode ver de súbito e, sobre a qual enuncia Miller (2010, p. 7): “Trata-se de algo que só se pode dizer como tyche. ‘Esta é uma verdadeira mulher’ só se pode dizer em um grito de surpresa, seja de maravilha ou de horror, e talvez só quando se percebe que visivelmente a mãe não tapou nela o buraco”.
ㅤ ㅤㅤHá quem diga que sinônimo de mãe é mulher. Há quem fale em instinto materno e no dom do amor incondicional. As muitas Medeias desmantelam estas estruturas. Em meio a discursos que tentam decifrar o enigma da mulher oferecendo como solução para a questão feminina a maternidade, estas mulheres semeiam, no mínimo, a dúvida. Pois o que podem agora dizer de uma mulher?
ㅤ ㅤㅤDirão que é loucura! Numa mãe que entrega o filho à morte há algo de estranho, mesmo de antinatural. E de fato, viver sob o primado da pulsão parece reservar ao homem algo de antinatural na medida em que ela se inscreve no corpo e desvirtua todo um circuito de satisfação. Havemos de nos perguntar se a pulsão em si não comporta uma dose de loucura. A eterna repetição do mesmo não é, no mais das vezes, nada adaptativa, ainda que, sabemos, própria do homem.
ㅤ ㅤㅤSe é verdade que esta é a solução para as mulheres, o graal da maternidade, o que Medeia produz é uma dissolução, pois renuncia a algo. Para além de uma mulher louca, resta saber que algo é esse a que ela renuncia. Adiante é preciso questionar: seria o amor a principal via para a devastação feminina?
Amor e devastação
ㅤ ㅤㅤ“Que mal terrível é o amor para os mortais”, queixa-se a Medeia abandonada e entregue aos prantos. Lembremos da contundente afirmação de Freud em sua Introdução ao narcisismo (2010, p. 45), segundo a qual ser amado representa o objetivo e a satisfação da escolha narcísica de objeto. Para ele, ser amada constitui para a mulher uma necessidade mais forte do que amar.
ㅤ ㅤㅤEm seu trabalho Amor atravessado pela pulsão de morte, Cleudes Slongo (2012, p. 2) envereda pelo caminho que leva a mulher do amor à angústia e à devastação. Para ela, “a mulher se dirige ao homem pelo imperativo de que ele a ame incondicionalmente; que diga o significante de seu ser, que a faria, enfim, toda”. Especialmente para a mulher o amor parece assumir um caráter central, poderia se dizer estruturante.
ㅤ ㅤㅤQuando Medeia não consegue mais extrair dessa parceria amorosa signos de amor, ela o destrói; é arrebatada por um pendor à agressão. Como se houvesse um tal imperativo que diz: “Se não me amas, desta relação não resta mais nada!”. Ela parece interpretar este dito ao pé da letra: envenena a princesa Glauce e seu pai, comete o infanticídio e deixa a si e a Jasão expatriados. Em quê se transforma esse signo de amor? – poderíamos nos perguntar. É a pulsão de morte que se manifesta em sua face absoluta e empuxa Medeia à devastação.
ㅤ ㅤㅤMais amiga do real, a relação da mulher com a angústia não é resguardada pelo significante, como é para o homem. Diz Miller:
“quanto ao gozo, o gozo copulatório, o sujeito feminino nada perde na história e, quanto ao desejo, esse sujeito tem uma relação direta com o desejo do Outro que não é mediado, que não tem por intermediário o -φ”. (MILLER, 2005, p. 30)
ㅤ ㅤㅤPara explicar a angústia na mulher, Freud se ampara na ideia de angústia de castração e no que chamou de pré-édipo. Idealmente, a angústia de castração na menina se dá pela mãe castrada; é quando o pai se tornaria objeto de amor e a mãe alvo de depreciação. A condição da mulher para a angústia, afirma Freud (2014, p. 64), consiste na perda do amor do objeto.
ㅤ ㅤㅤMedeia nos mostra o caráter estruturante que assume o amor para uma mulher. Ela demanda que Jasão a ame ilimitadamente, quer ser tudo para ele. Por amor, ela realiza tarefas hercúleas, dá a Jasão o velocino de ouro, mata e despedaça o irmão Apsirto para fugir de sua terra natal, a Cólquida, na Grécia. A traição de Jasão é verdadeiramente uma ferida narcísica para Medeia.
ㅤ ㅤㅤ“Uma inclinação à pulsão de morte costuma se manifestar com maior instensidade quando os tão esperados signos de amor ou de desejo não se acham presentes” (SLONGO, 2012, p. 3). Assim como a outra face do desejo é a angústia, o outro lado da demanda de amor ilimitado é a devastação. Medeia, como muitas mulheres, ama o amor.